Papos de Cozinha





Cozinha não é só lugar de cozinhar, é lugar de estar. E de muito papo. Por estas bandas, regado a um bom chimarrão.

Mas também tem caipirinha, tem temperos, sobremesa... bom... tem muito mais.

Vamos contando coisas que rolam pelas cozinhas da vida, daqui, de acolá, de bem mais acolá. Todo mundo tem histórias pra contar na cozinha. Tem até gente que escreve em livro...

       


                            COZINHANDO COM A MINHA FILHA

      Era um dia que parecia igual aos outros. Talvez até fosse ser mais chato que muitos. Uma pequena melancolia ... Eu nem sabia o que ia fazer pro almoço... Ela apareceu e começamos a conversar. E disse que ía fazer macarrão... Não sei por que, mas de repente me deu vontade de fazer também.
      Tem gente que, quando está melancólica, melhora fazendo umas compras. Eu conheço o efeito psicológico que faz pegar uma faca e picar uma cebola. E montar todo aquele ritual de quem está preparando uma obra de arte. Falta espaço pra tanta coisa que a gente vai espalhando, tigelinhas, especiarias, cascas de vegetais...
      Enquanto a massa cozinhava, começamos a preparar o molho. Fazer um molho é como compor uma música. Tem o barulhinho da faca na tábua, da cebola fritando na panela, a colher de pau esfregando no fundo enquanto se acrescenta pinguinhos de água fervendo para encorpar. Mas é mais do que isso, a gente entra num compasso ritmado, dança ao redor do fogão, e à medida que o sabor vai apurando, vai liberando notas no ar. Me sinto como se levitasse junto com o vapor que sai pelo cantinho da tampa.
      Como ela terminou primeiro, exibia orgulhosa o conteúdo vermelhinho na panela. Que me aguardasse, o meu não ia ficar atrás, o fato é que observar o resultado final do prato dela me dava mais água na boca. Chegava a sentir o cheirinho que vinha de seu fogão. Uma ria da outra quando caía algum utensílio no chão ou quando a outra queimava o dedo no vapor. Ela então borrifou o queijo ralado por cima e foi almoçar, enquanto eu dava os últimos retoques na minha iguaria.
      Incrível como aquele dia tomou outro rumo, adquiriu outro colorido, fazia tempos que a gente não fazia nada juntas. E a cozinha havia nos mantido por um bom tempo ali, ligadinhas, num mesmo compasso. Nosso macarrão com molho aqueceu nosso dia. Do outro lado da web cam, a imagem da minha filha comendo seu prato de macarrão fez com que, ao menos naquele dia, a distância parecesse bem menor, quase inexistente, só dois passos entre o balcão da pia e a bancada da outra parede onde coloco o laptop quando vou cozinhar.

Bel Plá. (Crônica publicada na Coletânea 21 CLIPE 2014 - Centro Literário Pelotense).




                      Concerto para corpo e alma

      "Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

      "Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...

      Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

      Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

      Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz... "

Rubem Alves
 


A refeição significa para o libanês muito mais do que simplesmente se alimentar.

       MEZZE é o nome que se dá às reuniões, tão comuns no Líbano, em que todos arrumam um pretexto para se juntar à mesa e, mais do que comer, degustar ao longo de alegres papos cada pequena porção de tabule, pepinos, azeitonas e o que mais houver disponível na cozinha e na imaginação. Uma típica casa libanesa tem, certamente, a despensa cheia de estoques de conservas e algo fresquinho preparado, sempre à espera dos convidados que indubitavelmente chegarão de surpresa a qualquer hora do dia. Tradição de um povo que se habituou, assim como a formiguinha das histórias infantis, a estocar para o outono e o inverno a comida farta da primavera e do verão.

       Daí também a abundância do azeite e do vinagre, que não faltam em qualquer prato libanês. São condimentos essenciais não só na preparação, mas também para a conservação, junto com o sal, dos mais variados alimentos. E hoje, sem o gosto do azeite, não dá pra imaginar o que seria do homus, aquela deliciosa pasta de grão-de-bico que agrada aos mais variados paladares. Assim também funciona com as frutas: uvas passas, damascos, tâmaras e figos secos, tudo isso nos remete à cozinha daquela região oriental.

       E pode apostar que numa mezze nunca faltará o homus ou o babaghanuj (pasta de berinjela). Menos ainda estará ausente a coalhada, item básico da dieta libanesa, servida de tantas e tantas maneiras: pode ser de queijo de vaca, de cabra, de búfala; fresca, seca ou cozida; consumida pura ou usada como tempero ou base para outros pratos. Iguarias todas que, invariavelmente, virão acompanhadas do tradicional khobz, o pão árabe redondo, indispensável em qualquer refeição e que funciona como substituto dos talheres – os alimentos são embrulhados em pequenos pedaços de pão e levados à boca. Para completar, a mesa se alegra com o gosto inconfundível do árak – aquela forte e marcante bebida destilada de uva e aromatizada com anis.

chef Leila Kuczynski, autora do livro "Líbano – impressões & culinária"






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